Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCL)

São Carlos, 16 de outubro de 2040

Estávamos no final dos anos setenta. Os nossos alunos andavam envolvidos numa pesquisa, procurando saber por que morriam os peixes do rio e o que seria a poluição, uma palavra que começava a aparecer nos livros e na comunicação social. Concluíram que as fábricas lançavam veneno nas águas. E o jornal da escola do mês de maio de 1978, abria com uma denúncia de degradação ambiental.

Sabendo da tensão, que se vivia numa terra, que nem estava no mapa, e de que os donos das fábricas destilavam ameaças, a televisão procurou a Escola da Ponte. Passamos a constar do “mapa da inovação” e eu acabei prefeito da cidade.

Numa manhã de sábado, a população se reuniu nos botecos e nas casas de quem possuía aparelho de televisão. Quando a reportagem apareceu nas telas da TV, não faltaram as manifestações de júbilo:

“Olha, ali, o teu filho, ó Miquelina! Olha, ali, o nosso rio! O filho do Armindo está a falar! E como ele fala tão bem!”

Perante a euforia, eu fiquei inquieto. Todo o país assistia à reportagem, tomava conhecimento de um projeto, que viria a ser uma das maiores referências em educação. Os “coronéis” locais também estariam a ver a reportagem. E não iriam gostar mesmo nada do que viam.

Na manhã de domingo, com as crianças, fui alimentar os animais, que a escola acolhia e amorosamente cuidava. Por toda a parte, do lar à igreja, da praça ao botequim, só se ouvia falar da reportagem do dia anterior.

Na segunda-feira, quando me dirigia para a escola, não escutei os risos habituais, só lancinantes gritos. Juntei as minhas lágrimas ao choro convulsivo das crianças, quando os meus olhos presenciaram o horror instalado em redor da escola. No lugar onde, antes, havia um “Hospital dos Animais” havia pele rasgada, carne dilacerada, terra ensopada em sangue. E, no muro da escola, com o sangue de inocentes vítimas, estava escrito: “Morte ao Professor”.

Quem leu o livro “A escola com que sempre sonhei” poderá ter ficado com uma representação mítica da Escola da Ponte. O meu amigo Rubem viu-a com olhos transbordantes de sonho e, poeticamente, a divulgou. Mas, a história dessa escola também foi feita de sofrimento. A Ponte provou que utopias são realizáveis. E tudo aconteceu em condições semelhantes àquelas que encontro na minha errância pelas escolas do Brasil.

Na década de setenta, a Ponte resistia no limiar da sobrevivência. Depois da ruptura paradigmática nela operada, ninguém poderia negar a possibilidade de transformar crianças em pessoas sábias e felizes. Porém, que fique bem claro: na Ponte, descobrimos uma forma; não inventámos uma fórmula.

Faço este reparo, porque venho encontrando, um pouco por todo o Brasil, reinterpretações críticas da Ponte, mas também deparo com a “vertigem” do modismo e detecto indícios de um fenómeno que o Júlio denominou de “pontifilia”. Urge obstar a que o mito se instale. A Ponte é mais resultado de transpiração do que de inspiração. Para que o seu projeto possa ser útil, será necessário recorrer a um exercício que revele o reverso de uma escola considerada de sucesso.

Assim como a Lua tem o seu lado oculto, também a Ponte tem bastidores que importa expor, para deixar ver as entranhas de um projeto humano construído por imperfeitos seres. Quem acredita ser fácil manter a união de uma equipa, ou resistir à maldade que se abate sobre quem ousa fazer diferente, ilude-se. Os projetos são fruto da resiliência. Por isso, me proponho falar das fragilidades de uma escola feita de sangue, suor e lágrimas. Falei-vos do sangue. Poderei falar-vos do suor e das lágrimas… se quiserdes que fale.

 

Por: José Pacheco

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