Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXIV)

Araguapaz, 20 de setembro de 2040

No Portugal dos primeiros dias do “regresso às aulas”, desgovernantes preocupavam-se com as concentrações no Santuário de Fátima. O “13 de outubro” aproximava-se e eles depositavam, “toda a confiança na organização do Santuário” – a divina providência iria proteger os peregrinos, ou não fosse Fátima uma terra milagreira… Sobre outras aglomerações, como as que aconteciam nas portas das escolas, os desgovernantes diziam “estar a procurar as melhores soluções” e que o uso da máscara era, em si mesmo, uma das soluções:

“Foi-nos dito que a máscara é mais benéfica do que prejudicial para as crianças, ainda que possa afetar-lhes o desenvolvimento por não poderem reconhecer expressões faciais” (sic).

O “regresso às aulas” decorria entre o absurdo e o ridículo. O achismo assumia a sua máxima expressão. Sabia-se que dois terços dos jovens eram assintomáticos, que qualquer um poderia ir “doente para a escola” sem que a escola os pudesse detectar, mas o negacionismo prevalecia sobre o bom senso:

“Pedimos às escolas para que haja ventilação natural e para que ninguém vá doente para a escola” (sic).

Como comentava uma articulista, “havia escolas para todos os gostos, do mais hipocondríaco ao mais descontraído”: a escola que desinfetava; a escola que recomendava distanciamento e mãos lavadas; e a escola que não permitia que os alunos nela fizessem refeições.

A alegria invadia os prédios das escolas no reencontro de amigos. Mas os amigos poderiam matar saudades em qualquer lugar, poderiam aprender em outro lugar, sem necessidade de um aparato aparentemente protetor.

O confinamento passava da sala de estar para a sala de aula: nas “aulas de reforço”, sob pretexto de uma ilusória “recuperação de atrasos”; nas “aulas sem intervalo”, que eram doses duplas de tédio; e em vãs tentativas de “recuperar aprendizagens” – “reforço, intervalo, recuperação, aula”, tralha pedagógica típica das pandemias dos século XIX e XX, mas em plena pandemia do século XXI. A hegemônica escola instrucionista, para além de estar fora da lei, carecia de explicação científica. Desde há mais de um século, nenhuma proposta teórica credível suportava o burocrático complexo.

O distanciamento temporal permitiu aos sociólogos de 2040 encontrar uma razoável explicação: em 2020, a educação familiar, social e escolar reproduzia uma cultura remanescente de tempos sombrios. Mas, já em 2020, outra socióloga, a minha amiga Helena, publicava um artigo com o sugestivo título: “Não voltar, recriar a Escola”. Apesar de ter perdido atualidade – o instrucionismo já foi erradicado das escolas – retirei o artigo do baú das velharias, dada a sua densidade e acuidade. A Helena, freiriana praticante e filha de outro Paulo, o insigne Mestre da “economia solidária”, fazia uma leitura atenta da situação:

“O mundo que levou à pandemia é profundamente marcado pela desigualdade, pela degradação social ambiental e pelo autoritarismo de bases colonial, machista e racista. Como já sabemos desde Bourdieu, Illich, Foucault e outros pensadores, a escola disciplinar, com sua estrutura baseada nos anos letivos, salas de aula, conhecimento fragmentado e provas, tem sua parcela de responsabilidade pela manutenção deste estado de coisas”.

Quem teve a maior parcela de responsabilidade foi quem, antes e durante a pandemia, contribuiu para a manutenção da escola da sala de aula, disfarçada de “invertida”, “híbrida” e outros modismos. Também foram responsáveis aqueles que deram guarida a essas e a outras falsas “inovações”.

Por: José Pacheco

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