Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXVII)

Santa Rita do Sapucaí, 23 de setembro de 2040

Num artigo há vinte anos publicado, a Helena alertava para o amadorismo das análises de política educacional e a prevalência de um burocrático discurso:

“Completados seis meses de fechamento dos prédios escolares, multiplicam-se os debates, balanços, propostas e polêmicas em torno de questões sobre “recuperar a aprendizagem”, “aprovar ou reprovar automaticamente”, “como seguir os protocolos na volta às aulas”, entre outras que abordam a educação com a linguagem e as problemáticas mais próprias do campo das ciências contábeis. Posições mais extremistas alertam para “danos irreparáveis”.

Reparai num pormenor: a Helena usou a expressão ”prédios escolares”, porque sabia que as escolas não eram e nunca foram prédios. Escolas eram e continuaram sendo, até hoje, pessoas aprendendo dentro de prédios ou fora deles.

O artigo da Helena era como um “separador de águas”. Também por isso o recupero do esquecimento a que foi votado. Ouso extrair dele mais algumas citações. Nunca fui “puxa-saco” e espero que a Helena o entenda como preito de homenagem a uma das vozes lúcidas desses tempos de medo e submissão.

Enquanto um parecer do CNE – caixa de ressonância de pesquisas instrucionistas de universidades norte-americanas – alertava para “perdas de aprendizado”, a socióloga assim se manifestava:

“Uma visão que tem ganhado mais relevância no debate é especialmente perturbadora, a ideia de “perda do aprendizado”. Pesquisas de consultorias americanas e mesmo de instituições brasileiras que comprovam esta perda foram citadas em parecer do Conselho Nacional de Educação sobre o assunto e vêm ganhando manchetes de jornal. Esta perspectiva é condicionada pelos nossos processos de escolarização, que associam de forma absoluta o ato de aprender com a experiência de estar em sala fechada ao longo de várias horas por dia, ao lado de algumas dezenas de pessoas da mesma idade, assistindo aulas sobre conteúdos previamente preparados por professores especializados em certas disciplinas e, a cada bimestre, testar os aprendizados em provas. A pandemia suspendeu abruptamente os grandes pilares desta experiência: os prédios escolares, as aulas, os agrupamentos etários, a imobilidade dos corpos nas carteiras”.

É bem verdade que a pandemia suspendeu os grandes pilares da escola da aula. Mas, arteiro, o instrucionismo se recompôs. Matreiros, os áulicos o refizeram. Hábeis mistificadores, os burocratas continuaram a impor regulamentos fósseis. A escola da aula sobreviveu à pandemia e mais uma oportunidade de inovar foi adiada. Nos idos de vinte, a duras penas, apenas um punhado de gente lúcida obstava a que mais disparates fossem consumados.

Para vós, que viveis num tempo em que a ciência é respeitada, poderá parecer estranho que, poucos anos atrás, assim fosse. Para que acrediteis, vos deixo com duas notícias, que encontrei num velho arquivo.

Em plena pandemia, no Rio de Janeiro, uma das regiões mais afetadas pela covid-19, o prefeito anunciava o regresso do público aos estádios, moeda de troca de apoio político, em tempo de eleições. Em Minas Gerais, a Justiça proibia o regresso às aulas num colégio militar, decidindo manter em “regime de teletrabalho todos os professores”. E o Ministério Público Federal requisitou ao diretor da instituição que apresentasse estudos técnicos, que sustentassem o retorno às atividades presenciais.

Negacionismo e ciência se confrontavam. A par da vírica pandemia, a epidemia da corrupção intelectual e moral alastrava. Mas, o bom senso sobrevivia.

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