Celorico da Beira, 5 de abril de 2041
Janusz Korczak, professor que pereceu nas câmaras de gás nazis, escreveu:
“A escola é um pobre comércio de medos e ameaças, boutique de bugigangas morais, botequim onde é servida uma ciência desnaturada, que intimida, confunde e entorpece.”
Se não tivesse acabado os seus dias num campo de extermínio, se lhe fosse concedido chegar aos idos de vinte, não precisaria de retirar sequer uma vírgula à sua frase, para que ela se mantivesse atual. Nesse tempo, os fundamentalistas da escola “tradicional” – aqueles que não admitem mais do que um modo de fazer escola – suspenderam a hibernação de tempos luminosos e revelaram o seu ódio à diferença.
Aqueles que se aperceberam do cheiro nauseabundo da decomposição da escola “tradicional” e ousaram reinventá-la acabaram vítimas da ignorância e da maldade. Pestalozzi foi humilhado. Tolstoi assistiu impotente ao encerramento da sua escola, por ordem do czar. Ferrer, que acreditava ser possível colocar humanidade no ato de aprender e ensinar, foi perseguido e executado no dealbar do século XX. A ditadura de Salazar não partilhava dos ideais da Escola Oficina. E Adolfo Lima conheceu as agruras da prisão e do exílio. A lista é extensa e o drama da “caça às bruxas” se prolongou até à década de trinta.
Só os inconformistas com poder criador ajudam, em cada época, a quebrar algemas da sociedade, injustiças e cegueiras, que não deixam ver os outros como pessoas. Mas eram raríssimos aqueles que se arriscavam no submundo das escolas, onde a mudança necessária se processava, porque a mediocridade e a maledicência espreitavam em cada esquina.
Nesses tempos sombrios, deveria ter sido atribuído um subsídio de risco aos professores que arriscassem defrontar os fundamentalismos, negacionismos e outras ignorâncias. Deveria ser instituído um santinho padroeiro que protegesse as escolas com aspirações de mudança das investidas dos seus detratores.
As turmas-piloto criaram um antídoto para a maldade – a integração comunitária.
Foram muitos os encontros com e nas comunidades. Nesses encontros, era apresentada e explicada a proposta de reconfiguração da prática escolar, para saber quais as famílias que desejavam que seus filhos nela participem. Nos encontros com as famílias, com a comunidade, com a administração educacional e outros órgãos de poder, era explicada a ressignificação dos espaços da escola, bem como a sua relação com a comunidade.
Através de encontros presenciais e virtuais, funcionários, professores, a direção das escolas e outros agentes comunitários criaram “círculos de vizinhança”, referencial-base de comunidades e redes. Estimulava-se o prazer do encontro através da informalidade, do debate aberto e esclarecedor. Tertúlias e outros rituais e rotinas promoviam vizinhança. Todos entendiam que se tratava de introduzir uma segunda oferta formativa na escola, mantendo as práticas anteriores desenvolvidas pelos professores relutantes em participar do núcleo de projeto.
Acaso se verificasse ser necessário, poderiam ser apresentadas aos órgãos de direção e gestão propostas de reelaboração do projeto político-pedagógico e do regimento interno. Havendo receptividade da parte do órgão de direção, a eventual reelaboração deveria ser feita de modo participativo, o que incluía a participação das famílias e da comunidade.
Ao longo da segunda década do nosso século, os fundamentalismos se dissiparam. Paralelamente (e pacientemente), uma nova construção social de aprendizagem surgiu. E, com ela, uma educação do século XXI.
Por: José Pacheco