Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXCIII)

Meda, 8 de abril de 2041

Recordais-vos, certamente, de vos ter falado de um velho rascunho encontrado entre outras antiguidades, num armário da casa velha. Nesse papelinho estavam inscritas propostas de tarefas como:

“Construir um cenário para a educação local, com base nos indicadores de implementação do projeto; identificar o potencial local para construção de comunidades de aprendizagem; disponibilizar contributos que promovam a eco sustentabilidade, o estímulo ao espírito inventivo e criação de soluções novas, bem como de responsabilidade social, princípio ético que nos dizia que tudo o que fosse inovado o deveria ser para benefício coletivo; sistematizar o conhecimento, para posterior difusão”.

A leitura desse escrito me comoveu. Ajudou-me a compreender por que razão, nos idos de vinte, nos chamavam “líricos”, “lunáticos”, “utópicos” e outros epítetos bem menos lisonjeiros.

Assim eram tratados professores como a Cecília, o Bruno, o André, a Lívia, a Ingrid, a Carolina, o Tuck, a Jana, a Fabi, a Ilka e muitos outros, que sinto orgulho de ter conhecido e de os ter como amigos. Continuam à espera de que alguém os descubra, reconheça e compreenda o alcance das suas ações. Em 2041, sigo os seus passos, insisto numa busca que não cessa, por ter sido nessa busca que me encontrei, reencontrei e achei razões para me manter professor. A esses “utópicos” devo quase tudo o que de bom eu possa ser. E o êxito das turmas-piloto.

 

A utopia passava pela adequação dos espaços de aprendizagem, apetrechados com materiais necessários a uma organização com referência a novos paradigmas. O prédio da escola convertia-se numa “ágora”, espaço de encontro, aprendizagem, partilha. A par da atualização do espólio das bibliotecas escolares e comunitárias, eram disponibilizados dispositivos de acesso à Internet e instalada uma plataforma digital de aprendizagem. 

Em cada espaço de aprendizagem, estavam sempre dois ou mais educadores, num efetivo trabalho de equipe, como observei na escolinha da minha amiga Lúcia. Voltei de lá com mais alento e vontade de não desistir. Voltei mais consciente do muito que teria de me melhorar, do quanto teria de aperfeiçoar a minha prática. Voltei com a minha “fé pedagógica” fortalecida, porque recebia desses professores lições de humanidade.

Todas as escolas deveriam ser espaços produtores de culturas singulares, mas também espaços de múltiplas interações, cooperação, comunicação. Hoje, sabemos que, nos idos de vinte, as escolas eram, quase sempre, espaços de solidão e que a solidão dos professores era da mesma natureza da solidão dos alunos. Só os “utópicos” ousavam criar solidários laços. Lede o que aconteceu na escola da Lúcia, decorridos dois meses após a chegada do Miro. 

Ele já escrevia frases, já fazia preparações no laboratório das ciências, até já lia palavras em inglês. E foi a professora de Inglês que protagonizou um episódio que viria a influenciar o curso da recuperação do Miro. 

Perante uma atitude menos correta, a professora repreendeu-o. Porém, apercebendo-se das nefastas consequências da reprimenda num momento ainda tão frágil da reciclagem dos afetos, emendou a mão como pôde, explicou-lhe o essencial da besteira, pediu desculpa ao Miro pelo exagero posto na repreensão. 

“Aqui, os professores pedem desculpa?” – inquiriu o Miro, perplexo.

“Claro!” – respondeu a Lúcia. 

O Miro reagiu com um esgar de espanto, deu uma volta e seguiu viagem, para que as professoras não vissem que pela sua cara de buliçoso inveterado passeava a manga da camisola com que limpava uma lágrima teimosa. 

 

Por: José Pacheco

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