Alvarães, 11 de abril de 2041
Tinha à minha frente cerca de uma centena de jovens entre os vinte e os trinta anos. Discutíamos as virtudes e os defeitos da “escola de antigamente”, num ambiente de incómoda letargia. Para os espicaçar, exagerei algumas posições críticas. E, talvez por ser apanágio da juventude contrariar os adultos, um dos jovens empertigou-se e assumiu a defesa do chamado “ensino tradicional” (a seguir abreviado para “ET”):
“Ó professor, escusa de vir com esses argumentos, que eu andei no “ET” e saí de lá muito bem-preparado!”
“Ainda bem.” – respondi, atenuando a irritação do meu jovem aluno. Ele insistiu, realçando as qualidades do “ET”, nomeadamente, “a preparação que dava na Matemática e na Língua Portuguesa” (sic). Eu contrapus, chamando a atenção para as conclusões de estudos, que contrariavam os hipotéticos méritos do “ET”. E acrescentei:
“Permitis que vos coloque algumas perguntas?”
“Faça o favor!” – disseram alguns num tom desafiador.
Aproveitei a deixa e coloquei-lhes duas questões muito simples, conteúdos do currículo do ensino fundamental. Uma estava relacionada com a Matemática; outra, com a língua Portuguesa. Os jovens entupiram. Alguns ainda balbuciaram algo ininteligível, depois fez-se um silêncio de embaraço. Eu rematei a discussão com crueldade. Recorri a uma pergunta matreira à qual nunca ninguém, até esta data, me soube responder:
“Quem descobriu os Açores?”
A resposta estava contida no livro didático dos primeiros anos de escolaridade. Aqueles candidatos a professor tiveram aula sobre os Açores (que nem eram açores – eram milhafres). Tinham vertido em prova o bla, bla, bla de um auleiro e este tinha considerado que haviam aprendido o que eram os Açores. Pura ilusão!
Se nas áreas nobres já estávamos conversados, a incursão na História de Portugal acabou com a resistência daqueles jovens tão combativos. Todos tinham decorado o sistema galaico-duriense, o “a ante, após, até” gramatical, gabavam-se de saber na ponta da língua as datas das “descobertas” marítimas e os nomes dos audazes achadores.
Tudo tinham “vomitado” (sic) nos testes e esquecido, para “arranjar espaço para o que não cabia nos copianços” (cola). Para aliviar as tensões, magnânimo, como convinha à circunstância, lá fui dizendo que nem tudo se deve rejeitar no “ET”, que é falsa a dicotomia entre moderno e antigo, entre inovação e tradição. Mas, se no domínio da acumulação de informação, o “ET” falhou rotundamente, o que dizer da aprendizagem de outros saberes? Quem se daria conta da falência do “ET”, também, em outros domínios?
O tradicional alheamento da escola relativamente à educação dos afetos, o tradicional ostracismo a que era votado o desenvolvimento sociomoral dos jovens, contribuíam para reforçar a ideia de que teríamos de aceitar como fatalidade uma sociedade de vícios privados e públicas virtudes.
Assistíamos ao escândalo da pedofilia e ao escândalo de uma comunicação social ávida de escândalos, que maculava a informação com exercícios de um voyeurismo sensacionalista e mórbido. Os herdeiros do “ET” consumiam programas imbecis, que a televisão e a Internet à medida do “gosto médio” lhes impingiam. Os herdeiros do “ET” eram incapazes de decifrar a mensagem contida na posologia de um medicamento, ou num edital. Viviam privados de entendimento de mensagens estéticas que faziam os humanos mais humanos. Obscenos e estultos, ultrapassavam numa curva, furavam a fila de espera, transgredindo códigos, escamoteando a necessidade do respeito por todas as formas de vida e pelo património comum.
Por: José Pacheco