Palmeiras de Goiás, 2 de agosto de 2040
No início de agosto, a OMS registrava recorde de novos casos de covid-19 no mundo. E os maiores números de casos eram registrados nos EUA, na Índia e no… Brasil. Atitudes irresponsáveis de políticos e de parte da população agravavam os efeitos da pandemia. Mas havia quem insistisse no… “regresso às aulas”
Na cartinha de ontem, critiquei o estribilho de uma canção, que dizia “na sala de aula é que se forma o cidadão”. Na cartinha de hoje, preciso falar-vos do “cidadão”, que a sala de aula “formava”. Também farei o contraponto com uma cidadania plena, que se instalou em muitas escolas, na década de vinte. Hoje, poderá parecer-vos absurdo o que vos direi, a seguir, mas crede que são verdadeiras as descrições.
No banheiro dos alunos da maioria das escolas de sala de aula, não havia espelho e o vaso raramente tinha tampa. Rareava o papel higiénico e era um funcionário que, “normalmente”, entregava dois ou três pedaços do dito papel ao utente. Se o necessitado estivesse com diarreia, teria de se “desenrascar” (como ouvi um funcionário dizer), porque na sala de aula se aprendia o “jeitinho brasileiro”.
O banheiro do professor já tinha espelho, tampa no vaso e até papel higiénico. O banheiro do diretor dispunha de tudo isso e, em alguns casos, até mesmo tinha instalado ar condicionado. Porque, na sala de aula, “formava-se o cidadão”, que deveria aceitar que até no urinar e defecar houvesse hierarquia, desigualdade.
Quando acabamos com a sala de aula, realizamos um re-ligare essencial entre família e escola. Deixou de haver “banheiro de aluno” separado de “banheiro de professor”. Não fazia sentido manter essa ridícula e deseducativa separação, porque, nos lares, não havia “banheiro de filho”, “banheiro de pai”… “banheiro de avô”.
Os alunos apagaram obscenas inscrições e sugestivos desenhos feitos nas portas dos banheiros. Também retiraram, por já não serem necessários, dísticos ridículos: “Por favor, urine no vaso”, “por favor, dê a descarga”, “por favor, não jogue no vaso papel ou produtos de higiene”, “por favor, não suba para cima do vaso… Por favor! Na escola da aula, o que era óbvio virava favor.
A técnica de limpeza deixou de limpar os banheiros e passou a ensinar os alunos e os professores a limpá-los. Quanto muito, participava na limpeza, para que os utentes aprendessem noções de higiene e a as aplicassem, na escola como nas suas casas.
Não levávamos “a comunidade para a escola” ou “a escola para a comunidade”. O prédio da escola deixou de ser um redil, onde se amontoavam crianças, sob pretexto de que os pais precisavam de ir trabalhar. Transformou-se numa ágora, lugar de fraterno e participado encontro. E não se fazia “visitas de estudo à comunidade”, pois ninguém visitava a sua própria casa – vivia nela!
A escola sem aula era um lócus de aprendizagem de cidadania, no exercício da cidadania. Muros foram derrubados e portaria foi substituída por um espaço de acolhimento, junto à biblioteca escolar. Esta deixou de estar fechada com cadeado e a comunidade tinha livre acesso ao seu acervo. Até os professores começaram a consultar alguns livrinhos de uma “biblioteca básica”, que o ministério havia oferecido a todas as escolas, mas da qual, até essa altura, os professores desconheciam a existência.
A sala dos professores deixou de ser refúgio e muro das lamentações. Passou a ser a sala de todos os educadores – professores, pais, funcionários, comunidade – lugar onde novas práxis anunciavam ter chegado o tempo de novas construções sociais de aprendizagem numa escola cidadã.
Por: José Pacheco