Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXXXII)

Angicos, 16 de junho de 2040

No Brasil de 2020, conheci um Adriel, menino de 12 anos, que fazia resenhas literárias, sonhava ser escritor.

Quando o seu padrasto foi vítima de um acidente vascular, Adirel, suspendeu as suas leituras, interrompeu o seu afã no Instagram, para cuidar do doente. E decidiu vender a maior parte da sua coleção de livros, porque, como explicou:

“Minha mãe precisou deixar o emprego e passamos por algumas dificuldades financeiras. Fui a um sebo e vendi quase tudo. Só deixei os meus preferidos e os que ganhei de presente”.

Começou a ler aos cinco anos e a madrinha presenteava-o com livros.  Apaixonou-se pela literatura. Fez amizade com as bibliotecárias da escola. Um dos seus livros preferidos era “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry.

Levava para casa as obras que encontrava no lixo, porque:

“Nem sempre tenho dinheiro para comprar livros. Mas, construí uma prateleira, forrei a parede do quarto com revistas em quadrinhos… tudo para ele viver no mundo dele” — relatava a mãe, orgulhosa.

Nesses tempos de intolerância, só por gostar de ler e comemorar o sucesso da sua página literária, esse extraordinário ser humano sofria ataques racistas nas redes sociais. Como este, no Instagram:

“Porco gordo. Eu achava que preto era pra estar cavando mina, não lendo. Deixa ser trouxa e volta para a sua realidade. Você foi criado para ser preto e pobre”.

‘Parem de mandar ódio para as pessoas. Melhorem, porque o mundo está precisando de mais energias boas nessa pandemia. Em pleno século 21, pessoas ainda são racistas?” – respondeu Adriel.

Além das mensagens de apoio, Adriel recebeu presentes de novos seguidores:

Não sei o que são, mas imagino que sejam livros. Não vejo a hora de chegarem!

Revi-me no Adriel. Este vosso avô menino também amava ler. Filho de um vassoureiro do cortiço da Ilha dos Tigres, também foi vítima de discriminação.

Creio ter chegado o tempo de vos falar do meu tempo de criança, para que saibais por que essa criança continua viva e irreverente.

Feitos os sete anos, o vosso avô passava as manhãs na escola. Depois do almoço, trabalhava na oficina do vosso bisavô. Ao cair da tarde, ia para a casa do Senhor Cardoso, trocar os gibis lidos – a fagulha o Cavaleiro Andante, ainda hoje, sinto o cheiro dos livros! – e conversar. Já noite adentro, à luz de um candeeiro a petróleo, esforçava os olhos na avidez de leituras urgentes.

O senhor Cardoso era o único morador da minha rua que tinha livros em casa. Levou-me a amar a leitura, muito antes de eu ir à escola. Não era professor, mas foi quem me ensinou a ler, pelo “método global de palavras”, que ele não sabia que era método. O seu “método” era amar.

Quando fui à escola, já sabia ler, mas disfarçava. Escrevia as “carreirinhas de letras”, fingindo hesitação; gaguejava na lição de leitura. Mas a mentira tem perna curta: fui “apanhado a ler”, num canto do pátio de recreio.

O professor Vasconcelos exibia-me, orgulhoso:

Dizei lá se o meu método não resulta! Os outros são uns burros. Nada posso fazer por eles!

Por “não ser burro”, recebi o prêmio de “melhor aluno”, cinquenta escudos, que serviram para liquidar a dívida contraída na mercearia do Senhor Belmiro.

Depois que eu entrei na escola, o Senhor Cardoso deu-me para as mãos um livro que ainda hoje recordo. Era um livro proibido pela Censura do regime ditatorial de então. Tinha por título “A oeste nada de novo”, um grande clássico da literatura. Foi o meu primeiro livro sem figurinhas. Saboroso, também por ser… um “livro proibido”.

Por: José Pacheco

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