Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXX)

Miramar, 25 de abril de 2040

Netos queridos,

Talvez me considereis saudosista, antiquado. Talvez o seja, mas é grande a minha preocupação de, antes de fechar os olhos, vos deixar notícia de tempos idos.

Na minha provecta idade, a memória de longo prazo predomina, mas receio esquecer pormenores. Não consigo prescindir de vasculhar o fundo das gavetas, para ler notícias, que ainda guardo em papel. Talvez já conheçais esta estória, mas arrisco contá-la. Começou em maio de 68 e culminou numa madrugada de abril, dois anos antes do nascimento do vosso pai. Cá vai…

Aprendi a tocar violão com o meu amigo Valdemar. Aprendizagem interrompida, para que ele cumprisse serviço militar e fosse combater a guerrilha, em Moçambique. Faltava menos de um mês para o Valdemar terminar a sua missão numa guerra sem fim à vista. Quando regressava de uma incursão, na Berliet dos feridos, avistou uma criança, sentada na copa de uma árvore. A criança acenou, parecendo afável. O Valdemar correspondeu à saudação com um sorriso e a simulação de um abraço. No instante seguinte, a criança atirou uma granada defensiva para dentro do caminhão.

Na última carta, que recebemos de Valdemar, o meu amigo dizia da sua satisfação de regressar ao lar. Voltou dentro de um caixão lacrado.

Destino idêntico teve outro amigo, o Eduardo. Voltou da frente de combate de Angola, com uma bala alojada na cabeça. O seu sofrimento durou menos de dois meses. Faleceu durante uma operação cirúrgica.

Ao cabo de meio ano de desgaste na frente de combate da Guiné, o meu amigo e inspirado poeta Miguel foi dado como “incapaz”. Ao cabo de dois anos de tratamento psiquiátrico, suicidou-se.

Cansei-me de perder amigos e juntei-me a quem conspirava contra a ditadura. Isso me valeu dissabores e situações, que não descreverei, porque não vos quero impressionar. A minha correspondência estava vigiada – as cartas, que a Censura deixava passar, chegavam abertas e com um número no envelope. Exceto aquela que continha a convocação para prestação de serviço militar obrigatório.

Companheiros da clandestinidade trouxeram-me um plano de fuga. Poderia percorrer a senda de muitos jovens da minha geração, que tinham desertado, atravessado a fronteira, rumo a um doloroso, mas protetor exílio. Optei por ficar no meu país. Era frágil o coração da mãe Luiza. Não suportaria a ausência do seu filho.

Nas três frentes de guerra em África, a maioria dos meus colegas de profissão desempenhava tranquilas missões de retaguarda. Eu, que era (e sou) o único estrábico dessa geração de professores, fui… atirador de infantaria. Fizeram de mim tropa de combate, carne para canhão. Assim, a Ditadura se vingava das tropelias desse furriel… mas quem se vingou foi o vosso avô.

Naquele dia de abril, um professor pacifista vestiu farda de combate, foi ajudar a fazer uma revolução, contribuir para libertar o país de uma ditadura de 48 anos. No dia 25 de abril de 1974, arriscamos a vida, para dar vida à liberdade. Portugal voltava a ser a “terra da fraternidade” cantada pelo Zeca.

Num Messenger de abril de 2020, a minha amiga Magda assim manifestava esse “espírito de abril”: Comemorar o 25 de Abril deveria ser uma tarefa diária. Em tempo de pandemia, deveria ser respeitar e proteger os outros com tanto empenho como nos protegemos a nós próprios. Professores como a Magda me faziam acreditar que uma nova e fraterna construção social de educação, emergente da crise de 2020, contribuiria para formar o cidadão democrático e participativo, o ser humano sensível e solidário. No Brasil e em Portugal, despontava um renovado “espírito de abril”.

Por: José Pacheco

Um Comentário

  1. Debora Dionisio 20 de junho de 2020 em 15:41- Responder

    Boa tarde caro mestre Pacheco,

    Realmente acreditar em um educação que reconstrua a nossa sociedade é um sonho, mas que tenho certeza que ainda verei, não só em escolas perdidas Brasil afora, mas em uma rede em construção.
    Um grande sonho que todos os dias, aos passos de formiguinha, luto para ver acontecer.

    Um abraço enorme virtual. Obrigada por nos inspirar.

    Debora Dionisio

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