Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (XCVII)

Sesimbra, 12 de maio de 2040

Na primeira semana de há vinte anos, o Brasil atingia o triste recorde de 751 óbitos por coronavírus, em 24 horas.  Na França, a prova de acesso à universidade fora anulada. Na Itália, fora substituído por uma prova oral, realizada na Internet. No Brasil, enquanto se apelava ao “ficar em casa”, jovens se inscreviam no enem.  Iriam aglomerar-se em salas de aula, para realização da nefasta prova. Nas primeiras oito horas, mais de um milhão de jovens já estavam inscritos. A campanha publicitária surtira efeito.

No vídeo da campanha, jovens supostamente candidatos a uma vaga na universidade proferiam frases de belo efeito: “Uma geração de novos profissionais não pode ser perdida”, “A vida não pode parar”. E uma jovenzinha, sorridente, exclamava: “Por isso, eu quero fazer o enem, para entrar na universidade!”. Na era da pós-verdade, a publicidade enganosa prosperava, mas havia quem fizesse análises técnicas dos instrumentos de manipulação.

A crer nesses analistas, eles teriam constatado que o jovem, que incitava outros jovens a tentar entrar na universidade, era um ator de 18 anos de idade, estudante de uma… faculdade. A menina de 19 anos, que dizia para “Estudar, estudar!”, também era uma atriz. Outra, de 24 anos, até já tinha feito vídeos de propaganda de uma empresa. Num vídeo aparentemente espontâneo, supostamente da iniciativa de um estudante padrão, o jovenzinho utilizava dois aparelhos topo de linha (um Galaxy e um Ifone de última geração), sentado numa ergonômica cadeira, num amplo e aprazível escritório. A jovem atriz, em frente a uma secretária de alto padrão, ostentava um computador Mcbook de dez mil reais… tal e qual um jovem favelado, num barraco da periferia.

Recordemos que 75% dos alunos brasileiros viviam em favela. E que decorria uma campanha para adiar o enem. Eu não advogava o adiamento da prova de acesso ao ensino dito “superior”. Desde meados da década de setenta e com consistente argumentação, eu pugnava pela sua extinção. Mas, as minhas preocupações eram idênticas às de outros professores. Havia professores conscientes e éticos, nesse tempo, embora em minoria. Um deles, manifestava a sua preocupação, no facebook:

Minha aluna R me mandou mensagem angustiada, pois acha que não dará conta do conteúdo para o Enem. Marquei de conversar… mandei alguns áudios e nada. Dez minutos depois ela me manda print falando que não conseguia baixar os áudios por causa dos dados do celular. Essa é a conexão que ela pode ter por enquanto, e mal serve pra baixar áudios de msgs. Encontrei uma aluna e sua família. Perguntei se estavam conseguindo contato com a escola. Estavam juntando dinheiro para comprar um celular novo, que pudesse acessar minimamente. Passados dois meses: “Ainda estamos vendo como fazer. Agora? Claro! Com quatro crianças, você acha mesmo que essa vai ser a primeira preocupação?”

Sou professor da rede pública, em uma escola de periferia e num cursinho comunitário pré-vestibular. Sei que há professores que lutam contra esse sistema ridículo, mas tenho contato com muitos, que estão mandando seus alunos copiar cabeçalho, professores de música e arte propondo absurdos sem fim.

Prevalecia um “salve-se quem puder”, o sacrifício de uma geração no altar de um desumano sistema econômico. Tânatos saía vitorioso. Para desgraça da educação e dos brasileiros, o futuro estava repetindo o passado.

Por: José Pacheco

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