Estórias da Velha Escola (XXIX)

Cabo Frio, novembro de 2039,

As escolas brasieiras sempre foram pródigas em profissionais que anteciparam o tempo profetizado por Tolstoi, há quase dois séculos: “a escola deixará de ser talvez tal como nós a compreendemos, com estrados, bancos, carteiras: será talvez um teatro, uma biblioteca, um museu, uma conversa”. Naquele tempo, sentia-me irmanado com os que recusavam aprender a geografia de carroças e  trens, para viver na era dos aviões e naves espaciais, aceitando o desafio de repensar a Escola. Sentía-me ínfima parte de uma fraternidade de românticos e conspiradores, co-autores de mudança, que se cumpria à revelia da bricolage normativa.

A pedra de toque da suave mutação era a solidariedade. A evocação da história do “molho de varas viria a propósito, mas escolhi uma outra metáfora para enfeitar o conceito: a do ônibus. Perdoai, queridos netos, que eu me tenha viciado em ilustrar com episódios, mais ou menos exemplares, aquilo que pretendo explicar-vos. Isso é defeito de professor de chão de escola. Desta vez, evoco a sabedoria popular do compadre Abílio. Porque é preciso que se diga que, se um projeto humano é sempre um ato coletivo, ninguém vai na frente, ninguém fica para trás. Projetos humanos são atos coletivos.

O amigo Abílio ajudava a organizar excursões de ônbus. Ainda o dia da viagem vinha longe e já um vizinho lhe batia à porta, a pedir para pôr a sogra junto à cadeira do motorista, porque ela lhe dissera que, “se não fosse à beira do motorista, era melhor ficar em casa. E não queira saber os problemas que eu tenho tido co’a minha sogra! Se ela me ficasse em casa, era mais uma carga de trabalhos co’a minha patroa. E o compadre Abílio que me desculpe, mas eu até sei que já fez a vontade a mais alguém…

O amigo Abílio cortava a fala ao requerente e prometia o almejado lugar. Porém, não tardava nova fala precatória:

“Ó senhor Abílio, ainda bem que o encontro! O meu cunhado… não me diga que não conhece! Ele pediu-me que lhe pedisse para o filho mais novo ir nos lugares da frente, que o guri enjoa. Nestas ocasiões, até come o pouco, mas deita-o fora, logo ao chegar à a primeira curva. Não me diga que não! Pela sua rica saúde!”

Despachado mais um requerente com promessas de “ir ver o que se podia fazer”, logo outro pedido o aguardava à chegada ao botequim:

“Deixe estar, que é por minha conta!” – e o generoso pagante do café com cachaça despedia-se com peremptória sentença: “Eu sei que posso ir sossegado à minha vida, que o amigo não é homem para me deixar ficar mal. A minha família vai à frente, que os amigos são para as ocasiões, não é? Fique sabendo que é um grande favor que o amigo me faz e vai ver não se há-de arrepender…”

O Abílio perdia tempo e paciência neste jogo de empenhos. Então, para grandes males, grandes remédios…

Um dia, juntei o povo todo e, antes de dar ordem de partida ao motorista, fui ao microfone e disse, alto e em bom som: Escusam de me andar a pedir para ir no banco da frente. A partir de agora, o ônibus vai de lado!

Naquele tempo, havia quem impedisse que o ônibus do nosso destino comum fosse de lado, quem tentasse conduzir os passageiros numa travessia da vida por labirínticos caminhos. Hoje, há quem rasgue amplas avenidas onde mora a solidariedade. Enquanto alguns se perdem por discretos e sinuosos percursos, outros contornam, juntos, a angústia dos indícios. E o tempo de acontecer mudança é agora e sempre.

Com esta urgente e amorosa “mensagem” vos deixo.

O vosso avô José.

 

Por: José Pacheco 

 

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