Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLVIII)

Corumbataí, 24 de outubro de 2040

Nas minhas brasileiras deambulações pelo chão das escolas, presenciei situações típicas da crise educacional, que se vivia nos primeiros anos deste século. Deixo-vos com dois exemplos.

Portas fechadas, a tripulação do avião avisava ser proibido o uso de celulares. Os celulares tocavam e muitos passageiros faziam ouvidos de mercador, ligando para familiares e amigos.

Quando o avião chegou ao fim da pista, nos preparativos para decolar, a aeromoça insistia:

“Minha senhora, faça o favor de apertar o cinto da sua filha”.

“Ela não deixa colocar o cinto. Não consigo convencê-la!” – e a mamã insistiu:

“Vá lá, meu anjinho, deixa mamãe pôr o cinto!”

A resposta foi uma sonora bofetada dada pelo seu anjinho.

A mamã encolheu-se. Sorriu para a aeromoça:

“Não vê que é uma criança…”

E, durante toda a viagem, sapatos sujos em cima do assento, a criança premiu o botão de chamada, arrancou e destruiu tudo a que pode deitar a mão. Impunemente.

O avião aproximava-se da manga de desembarque. Três vezes a aeromoça apelou: “Por favor, permaneçam sentados até à paragem completa da aeronave”. Repetiu o apelo em língua inglesa. Os passageiros, já levantados dos assentos, não voltaram a sentar-se.

Presumi que fossem surdos, ou que não fossem… ingleses.

O segundo episódio ocorreu numa viagem por estrada. Um jovenzinho boçal descalçou-se, inundando o ônibus de um cheiro nauseabundo. Pousou um pé no espaldar do assento à sua frente. A passageira sentiu o contacto do pé (e do odor), encolheu-se e voltou o rosto para a janela.

Tal como outros energúmenos, esse jovenzinho deveria ter andado na escola da aula. Certamente, tiveram pais, parentes e amigos. Educação não tiveram. Quem os ajudou a crescer?

Naquele tempo, não havia um projeto político-pedagógico sequer que não estivesse inscrito. “O aluno será autônomo, responsável, protagonista da sua aprendizagem, preparado para a cidadania”. Mas, as práticas de ensinagem contradiziam as nobres intenções.

A introdução de uma Base Nacional Curricular Comum espúria apropriara-se do discurso contemporâneo das ciências da educação: “competências, educação integral, habilidades”… blá, blá, blá. E um “Parecer” sobre essa lei ilegal a legitimava, replicando o teor de leis nunca cumpridas: pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania” etc. etc. etc.

Bonito discurso: “difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum”. Sublinhando-se que “na implementação do projeto político-pedagógico, o cuidar e o educar [eram] indissociáveis funções da escola (…) para o desenvolvimento do aluno em todas as suas dimensões”.

A introdução da BNCC era um verdadeiro “poema”, mas a introdução não era a base. A maioria dos professores jamais a leram. Continuariam a “dar aula” pelo manual didático, porque a BNCC era uma proposta fundada no paradigma instrucionista. E de intenções estava o inferno cheio, como diria a sabedoria popular. Existia, há mais de um século, um fosso entre a intenção e gesto. E as leis eram nados-mortos.

Metaforizemos! Os ratos se reuniram na busca de solução para as perseguições que um gato lhes movia. No plenário, alguém teve uma ideia genial:

“Ata-se um sino ao pescoço do gato e quando ele se aproximar, nós ouvimo-lo”.

A proposta mereceu o aplauso e a aprovação por unanimidade. Contudo, lá da última fila, um ratinho ousou perturbar o consenso e a satisfação geral:

“Pois é. Eu também concordo com a proposta. Só gostaria de saber quem vai pôr o sino no pescoço do gato”.

 

 

Por: José Pacheco

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