Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXVII)

Vila das Aves, 21 de janeiro de 2041

As gaivotas sonhadoras, personagens de estórias contadas quando nascestes, aprenderam duras lições. Elas estavam sempre prontas a aprender com outras aves. A maior das lições foi dada por uma andorinha que, apercebendo-se do drama vivido pela escola das aves, por ali se deixou ficar, enquanto durou o cerco imposto pelos abutres. 

É certo e sabido que nenhuma andorinha, em seu perfeito juízo, se deixaria ficar trocando o certo pelo incerto, arriscando a vida. Mas esta aceitara plantar ninhos em outros beirais. E, como sempre acontecia, perante a simplicidade e beleza dos pássaros, que me traziam à memória a simplicidade e a beleza esquecidas por muitos homens, quedei-me num silêncio comovido perante o gesto da andorinha resiliente.

Pressinto, queridos netos, que vos questionareis: como pode essa andorinha arriscar expor-se aos rigores da invernia e ao peso das saudades do futuro? Sabemos que a andorinha é uma criatura de hábitos gregários, que não sobrevive à solidão e que, quando aprisionada, resiste secretamente em silêncios que falam de voos por dentro. Mas essa manifestava uma alegria de existir maior que a saudade que sentia de África. É que a andorinha não estava sozinha, mas amparada. Eu explico.

No decurso das viagens, sempre que uma andorinha adoecia ou ficava ferida, logo as duas mais próximas abandonavam o bando, para a acompanhar e proteger, somente regressando ao aconchego de um outro bando em migração, quando a andorinha protegida recuperasse a capacidade de voar. E eu bem vi, ao longo de um longo Inverno, um ninho de lama a abarrotar do calor de três pares de asas negras. Assim, as gaivotas receberam destas andorinhas que sonhavam o regresso da Primavera mais uma prova de que a solidariedade não era uma palavra vã. 

Num distante mês de janeiro, invernosos frios foram temperados com a chegada de pássaros de todas as cores e origens, que, seguindo o exemplo das andorinhas solidárias, acorriam em auxílio da escola das aves. E já não era apenas uma escola que urgia perseverar, mas todas as escolas onde, sob múltiplas formas esboçado, o futuro despontava. 

Como vedes, eis-me, de novo em terras portuguesas. Havia jurado nunca mais passar um inverno no meu país de nascimento. Viciei-me no calor tropical do país de adoção. Mas, decidi fazer-vos uma visita. E voltar – talvez pela vez derradeira – ao lugar de todos os dramas de infância e juventude. 

Senti-me assaltado por memórias, que me remeteram para as visitas a uma cadeia, onde o vosso bisavô estava preso, apesar de inocente. O seu “crime” tinha sido o de nascer pobre e crescer sozinho. Aos sete anos de idade, saíra da casa paterna. para um solitário correr mundo.  E a lição, que recebi de um pária social foi a de que inclusão não rima com solidão.

Hoje, se completam sessenta e seis anos sobre o infausto dia em que a vossa bisavó nos deixou. Morreu nos meus braços, nesse final de tarde. Vivera uma vida feita de sofrimento e solidão, mas não morreu sozinha. 

O falecimento da Mãe Luíza foi como um sinal de alarme, o seu exemplo de vida me ensinou a lição da andorinha solidária. Numa sociedade do “cada-um-por-si”, poder-se-ia estar sozinho na cela de uma prisão, no seio da família ou dentro de escolas, onde não havia escuta sensível. 

Como diria a raposa do Pequeno Príncipe, só conhecemos bem as coisas que cativamos. A nossa vocação deveria ser a de cooperar, a de ajudar a voltar à vida entidades vivas isoladas em si. Porque, nesse tempo, ainda havia quem estivesse bem acompanhado, em lugares ermos, e quem estivesse sozinho, no meio de uma multidão.

 

Por: José Pacheco

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