Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCLIV)

Angicos, 19 de setembro de 2041

Querido amigo e mestre,

Faz hoje, exatamente, vinte anos, participei num evento comemorativo do teu centésimo aniversário. Pediram-me que sobre ti falasse. Mas, o que poderia eu dizer de ti, se de ti já tudo fora dito? 

No segundo dia de um mês de maio, nos deixaste órfãos de presença e permaneceste exilado. O regresso do exílio, a que a estupidez humana te condenara, aconteceria já na década de vinte, quando amorosos e corajosos educadores te praticaram. 

Li o “não-parecer”, que o Rubem redigiu, quando lhe pediram a redação de um “parecer” sobre a tua reintegração na universidade. O Rubem pugnava pela realização dos teus sonhos. E me deu a conhecer uma carta, que fazia jus ao teu “tu já lê”. Começava assim:

“Sei que esta carta enfrenta uma dificuldade de base, para chegar aos seus destinatários – é que muitos deles não sabem ler. O grande entrave para a melhoria da qualidade educacional brasileira é o fato de que a nossa população está satisfeita com a escola que temos.” 

Hoje, habitas o chão de escolas onde uma educação emancipatória acontece. Mas, nos tempos sombrios dos idos de vinte, havia quem te intitulasse “patrono da educação”, enquanto uma récua política e burocrática execrava a tua memória. Apelava-se ao “regresso às aulas”, ao retorno ao passado, a um velho “novo normal” de onde a educação brasileira nunca havia saído. Lideranças tóxicas, uma administração autoritária e ridículos tiranos não te perdoaram teres evidenciado a natureza política (e amorosa) do ato de educar. A ignorância prosperava e muitos te detestavam, porque denunciavas a exclusão, a reprodução de uma educação “bancária”. 

Nesses tempos sombrios, havia quem pugnasse por “tirar Paulo Freire das escolas”. Mas, como seria possível tirar-te de escolas, se nelas tu ainda não tinhas entrado? O amigo Eustáquio até afirmava que nunca foras aplicado na educação brasileira. E que, nas universidades, tu eras apenas título de biblioteca, ou nome de salão. 

Nos idos de sessenta, após quarenta horas de estudo, na lista de trezentas e oitenta palavras decodificadas pela primeira turma pelos moradores surgiam termos como: “Deus, promessa, esmola, chuva, preto, triste, medo, coragem… esperança”. Decorrido meio século, eram as mesmas as palavras comuns do léxico quotidiano social, cultural e religioso de Angicos.

Mas, nos idos de vinte, já havia educadores conscientes de que o ato de educar era ato coragem política e… de amor. Havia professores que se apercebiam da sua incompletude e sabiam que o ser humano estava em permanente estado de projeto. 

Marginais ao instrucionismo vigente, com amor e coragem, esses educadores alimentavam projetos em ti inspirados. Autonomamente, se faziam anunciar. E denunciavam uma política negacionista, que conspirava contra a mudança e a inovação. Invocavam-te naquilo que tinham lido no livro “Pedagogia da Autonomia” e no saboroso “Professora sim, tia não”:

“Como esperar que uma administração de manifesta opção autoritária considere a participação real dos e das que fazem a escola, na medida em que esta se vá tornando uma casa da comunidade?”

Sempre que alguém me pedia ajuda, eu recomendava que se procurasse nas escolas professores que ainda não tivessem morrido. Ainda havia professores que se consideravam completos e não aceitavam a solidariedade dos pares. Estavam mortos, prontos para baixar o corpo à terra e elevar a alma ao lugar etéreo onde te encontras. Eram causa da tua segunda morte – a da memória. Porque um professor não morre, quando o coração para, mas quando deixa de amar.

 

Por: José Pacheco

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